Por Sandro Neiva
No último final de semana estive a passeio em minha cidade natal, Paracatu (MG), a 200 quilômetros de Brasília. Como de costume, toda vez que passo por lá, gosto de ir diretamente à residência de uma tradicional família do lugar, a mesma que produz a afamada aguardente de rapadura Paracatulina, a fim de comprar um pouco da cachaça de excelência, iguaria disputada na Capital da República.
No quarto bucólico, repleto de garrafas de pinga, está sentado um renomado médico da cidade. Coisa normal, está ali para tomar uns tragos, apesar de não haver nenhum copo na mesa que possa denunciá-lo. É educado comigo. Primeiro pergunta sobre o filme “Ouro de Sangue”, que realizei em Paracatu há dois anos. Na época, ele se mostrou impressionado com o documentário, que mostra os efeitos letais de uma mineradora canadense que atua a céu aberto, em perímetro urbano e dispara poeira tóxica vinte e quatro horas por dia nas casas da histórica cidade mineira. Mostrou-se impressionado, mas como um dos profissionais de saúde mais respeitados de Paracatu, se negou, à época, a dar qualquer depoimento para o filme, ou seja, optou pelo silêncio e omissão.
Mas vamos voltar à história inicial. Enquanto uma mulher embalava minhas duas garrafas de cachaça, respondi ao médico (que também é fazendeiro) que eu havia acabado de produzir um novo filme, chamado “Cerrado em Pé”. Contei que era outro documentário de denúncia, desta vez contra o modelo nefasto do agronegócio, implantado no Brasil há décadas e que atua sob uma lógica devastadora, destruindo o Cerrado e a Amazônia sem dó nem piedade.
O médico ruralista, agora com os olhos arregalados, resmunga secamente: - “Que bom”. Iniciou então um eloquente discurso em defesa do novo Código Florestal. Faltou dizer que Aldo Rebelo é um santo. Talvez estimulado pelos vapores etílicos da Paracatulina, sua veia de ruralista ativou-se rapidamente e a retórica das elites aristocráticas prevaleceu na prosa do homem. Argumentei que esse novo Código Florestal é um desastre para o meio ambiente pois reduz pela metade as Áreas de Proteção como as matas ciliares à beira de rios. Argumentei que o deputado Aldo Rebelo é um comunista que defende interesses ruralistas e tal fato beira o surrealismo político. Também disse a ele que caso o Código seja mesmo aprovado, isso representaria um retrocesso de pelo menos 40 anos na legislação ambiental brasileira pois prevê excesso de autonomia para os estados e anistia para os latifundiários criminosos que promoveram desmatamento em massa, o que, aliás, estaria ferindo a Constituição do Brasil no que tange aos direitos coletivos e bens públicos.
Gentil, o médico convidou-me a conhecer suas terras qualquer dia desses. Só em pensar no assunto, fui tomado por leves tremores de forma súbita (o que, sem dúvida, ele diagnosticaria como algum distúrbio clínico-patológico-emocional-endógeno) mas, cinicamente, agradeci pela gentileza do convite. Paguei a conta, catei minha cachaça, despedi-me do "doutor" de forma cordial e educada - como minha boa mãe me ensinou -, desejei-lhe tudo de bom e enfim, fui embora, munido de dois tubos de Paracatulina e pensando sozinho com meus botões... pensando que as mentes retrógradas do corporativismo feudal são as grandes responsáveis pela destruição de nossas florestas, pelo envenenamento crônico de nossos rios e pela trágica redução de nossa biodiversidade.